Plataformas de mídias digitais: o grande mosaico do que tem se desenhado socialmente

Depois da mudança de políticas da Meta, convidamos a pesquisadora Raabe Bastos (UFMG) para analisar o impacto específico da medida sobre as lesbianidades

A Meta, que abrange as plataformas Facebook, Messenger, Instagram, Threads, WhatsApp, Oculus VR, Giphy e Mapillary, anunciou, dia 7 de janeiro de 2025, o fim do seu programa de checagem e a criação de um sistema de “Notas da Comunidade”, seguindo a linha de Elon Musk, no X, que deu fim às políticas de moderação. Musk nada sofreu, de fato, em relação às mudanças que fez no X, sendo estas benéficas ao discurso de ódio, à desinformação e ao esfarelamento de democracias. Assim, o ambiente se mostrou favorável para que outras plataformas sigam o mesmo caminho, permitindo que Zuckerberg abandonasse medidas que foram adotadas após o escândalo da Cambridge Analytica, em 2018. O acontecimento marca um novo momento nas plataformas de mídias sociais em suas relações com os Estados, públicos e imprensa, sendo o CEO da Meta um dos representantes dessas mudanças.

As Notas da Comunidade são um problema, pois não têm a qualidade das agências de checagem, propiciando uma guerra entre usuários, visto que a todos será permitido criticar ou endossar qualquer publicação; elas representam a troca de profissionais especializados por pessoas não qualificadas. Os veículos jornalísticos e as agências de checagem serão brutalmente afetados por tais decisões. Portanto, a postura da Meta sinaliza um terreno adverso nos próximos anos, principalmente no Brasil, visto o seu histórico, das fake news à desinformação, nas últimas eleições.

O anúncio da Meta está alinhado com o novo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Assim como ele, a empresa afirma defender a “liberdade de expressão”, mascarando o objetivo primeiro das plataformas: estimular a atividade dos usuários para a produção de dados que geram receitas enormes para as empresas. Sim, ao custo do discurso de ódio, do ataque à soberania dos Estados e da destruição de democracias. Quanto maior a polêmica, maior o engajamento, de modo que quanto mais moderação, menor o impacto, gerando menos dados. 

Na posse do republicano, dia 20 de janeiro, estavam presentes os CEOs de algumas das maiores plataformas do mundo: Mark Zuckerberg, CEO da Meta; Shou Zi Chen, CEO do TikTok; Elon Musk, CEO do X; Sam Altman, CEO da OpenAI; Sundar Pichai, CEO da Google; Tim Cook, CEO da Apple; Jeff Bezos, CEO da Amazon. Cesarino, em seu livro “O Mundo do Avesso” (2022) mostra como as plataformas se aproximaram da extrema direita exatamente por serem o ambiente propício para a disseminação das ideias desses grupos. São confluências de interesses econômicos e políticos, dando mais espaço para discursos antidemocráticos, preconceituosos e extremistas, portanto, gerando maior engajamento. O apoio a Trump nos mostra riscos imediatos às eleições em outros países, sendo de urgência uma regulamentação para o setor.

Existe uma afinidade entre as plataformas digitais e os movimentos políticos extremos, em situação onde se utilizam da ideia de que as redes sociais são um espaço de expressão democrático, dando voz a todos em contraponto à mídia tradicional dominante. Porém, essa construção gera uma crise de autoridade e legitimidade no jornalismo tradicional, abrindo caminho para desinformação a partir de enunciadores não qualificados. Assim, tem-se a agregação de indivíduos, formando um grupo mobilizado por discursos que reiteram as próprias crenças, criando um “nós” versus “eles” (Cesarino, 2022).

O crescimento da extrema direita no Brasil vem de fenômenos complexos que exigem análises cuidadosas dos seus antecedentes e circunstâncias, porém, entendemos que grande parte dessa expansão ocorreu em decorrência da falta de regulação das redes sociais, o que possibilitou o aumento do apoio a ideologias extremistas. Nas plataformas, a visibilidade é a recompensa pela criação de conteúdo, gerando uma imensidão deles, muito maior do que pode ser efetivamente consumido, assim, há uma seleção algorítmica do que será visto, numa lógica de hierarquização do que é considerado importante, estabelecendo sua relevância pública, segundo regras e parâmetros estabelecidos pela plataforma (Cesarino, 2022). Porém, tais operações não são neutras, pois reforçam as invisibilidades dos corpos que há muito são marginalizados, em hierarquizações anteriores as redes, mostrando outras dinâmicas do online e offline que compõem as relações sociotécnicas.

Para assentar a nossa reflexão, uma breve definição a respeito do que é uma plataforma: para ser definida como tal, a programabilidade pela troca de dados, conteúdos e funcionalidades deve ocorrer de três formas: separação entre conteúdo e apresentação; modularização de conteúdo e funcionalidades; interface com base de dados. Assim, a plataformização implica no uso dos dados que lhe são externos, coletados dos próprios usuários, para as configurar. Uma de suas dimensões, particularmente importante para este debate, trata da interação dos usuários, estruturando como os indivíduos interagem entre si e com a empresa (Zuboff, 2019).

As novas diretrizes das plataformas recaem sobre os corpos dissidentes com um peso ainda maior, levando ao questionamento: quais são as implicações nas lesbianidades? Em um primeiro momento, consideram-se os regimes de visibilidade e invisibilidade e como influenciam nas construções e desconstruções das práticas e identidades lésbicas, o que nos leva ao conceito de racismo algorítmico: cunhado por Tarcízio Silva (2022), trata de uma atualização das opressões que beneficia grupos raciais hegemônicos na manutenção do poder. 

A sistematização de violências tecnológicas também se manifesta na lesbofobia: enquanto os debates a respeito têm certo crescimento, as plataformas, que lucram com o engajamento dos conteúdos contra e a favor de existências, permitem associar gays e trans a doenças mentais, além de defender limitações de gênero em empregos específicos. Conforme divulgado pela Rádio CBN, as novas diretrizes da Meta permitem: “alegações de doença mental ou anormalidade quando baseadas em gênero ou orientação sexual, considerando discursos políticos e religiosos sobre transgenerismo e homossexualidade, bem como o uso comum e não literal de termos como ‘esquisito’”. As mudanças também permitem expressões racistas, como “eu odeio negros” e “brancos são os melhores”, anteriormente proibidas.

Faturando com o combate e com a reafirmação de opressões, as plataformas são acusadas de darem maior espaço aos conteúdos que geram reações como ódio ou indignação e de conferir maior visibilidade ao que endossa padrões normativos, reforçando hierarquias de classe, raça, gênero e sexualidade (Cesarino, 2022). Shoshana Zuboff, em “A Era do Capitalismo de Vigilância” (2019) afirma que as plataformas entregam “uma determinada mensagem a uma determinada pessoa no momento exato em que ela tem maior probabilidade de influenciar seu comportamento” (p. 1441), fazendo com que seja possível associar tal questão a uma faceta do dispositivo da sexualidade de Foucault (1988), a coerção do que é produzido e do que se dá a ver.

No artigo “O algoritmo anti-interseccional: contribuições do pensamento lésbico para análises em plataformas” (2022), as autoras Ziller, Barretos, Betton, do Carmo Xavier e Hoki, mostram como as formas de registro e circulação de conteúdos incidem na produção identitária, em que “as plataformas de mídias sociais estabelecem as estruturas que coletam, organizam, conferem legibilidade e distribuem os dados. Ainda que haja, nas plataformas, conteúdos que não encontrávamos com a mesma frequência nas mídias tradicionais, é importante ressaltar […] que a agência algorítmica atua na reafirmação de uma visibilidade normativa” (p. 10). Agora, além do reforço na norma, aqueles que promovem ódio e opressão são convidados a intensificarem tal comportamento.

Nessa esteira, a fetichização dos corpos lésbicos é uma questão em relação às plataformas: no Google, quando analisadas as respostas dadas nos buscadores do navegador, percebeu-se que a procura por “lésbica” gerava resultados pornográficos. Diversas manifestações ocorreram, destacando-se a campanha #SEOLesbienne, realizada em junho de 2019, expondo e cobrando ao Google sobre o viés contido nos resultados apresentados para essa expressão e seus correlatos. A ação resultou em uma alteração algorítmica nas respostas dadas para o termo, passando a apresentar maior diversidade de fontes e conteúdos que tratam de lesbianidade. Esse acontecimento político é especialmente relevante para ilustrar como os algoritmos reproduzem, atualizam e produzem invisibilidades e violências (Motter, 2020).

A revisão do Search Engine Optimization, alterando o funcionamento de sua ferramenta de pesquisa e seus resultados, representou uma possibilidade de luta política, porém, incipiente, visto que, para além dos últimos acontecimentos relacionados às plataformas, temos a averiguação de que outros buscadores, como Bing, Yahoo e YouTube ainda apresentam resultados pornográficos ou sexualizados quando a busca é por “lésbica”  (Motter, 2022). Essas tecnologias influenciam as construções das lesbianidades: a maior parte dos usuários não navega por muitas páginas dos buscadores, concentrando-se nos primeiros resultados, de modo que a ordem deles é relevante na reprodução de representações hegemônicas ou contra-hegemônicas (Ibidem). A problemática parte de um projeto normativo de matriz heterossexual que afeta diretamente as lesbianidades enquanto práticas e identidades, em reforço ao que Rich (2010) chama de heterossexualidade compulsória, sendo a invisibilidade lésbica parte constituinte da cishetenormatividade, endossando a heterossexualidade e a cisgeneridade como as únicas possibilidades de existências.

Questões de visibilidades e invisibilidades do gênero e da sexualidade, em termos foucaultianos, são discutidas através das noções de vigilância e disciplina, sendo a primeira responsável por visibilizar quem deve sofrer a ação disciplinar. A disciplina, por sua vez, define maneiras de viver e falar, em junção de discurso e ação. Portanto, não é necessário reprimir a visibilidade para dificultar a produção de discurso, ela é exposta enquanto seja possível formatar, em potencial pedagógico, como o que não deve ser realizado. Assim, percebemos uma relação entre visibilidade e enunciação, em que os discursos são formados por meio do pensamento heterossexual, nos impedindo de elaborar fora de seus termos, conforme Wittig: “serás hétero ou não serás” (2022, p.10).

Rich (2010) entende a heterossexualidade compulsória como uma forma de “assegurar o direito dos homens de acesso físico, econômico e emocional” (p.63) às mulheres. Por sua vez, Wittig (2022) a define como um sistema de pensamento. Portanto, a heterossexualidade, tanto em sua dimensão compulsória ou como sistema, se apresenta de primeira importância para a manutenção da invisibilidade (Ziller, et al, 2022). Tais questões se complexificam quando olhamos para as plataformas de mídias sociais, no qual os algoritmos são formatados num extenso banco de dados que influenciam as interpretações de mundos possíveis. O’Neil (2021) explicita que modelos algorítmicos não são puramente matemáticos, mas dotados de noções racistas e machistas, onde “os pontos cegos de um modelo [algorítmico] refletem os julgamentos e prioridades de seus criadores” (p. 373). Com as mudanças da Meta, tem-se a afirmação desses vieses.

A pesquisadora Julianna Motter, em seu artigo “Como as plataformas digitais têm (re)produzido as lesbianidades? Uma abordagem decolonial dos processos de plataformização das sexualidades”, diz que “ante a plataformização da vida, também é possível observar a articulação de indivíduos com, e a partir de, os dispositivos e as plataformas, a fim de  produzir  sentidos  sobre  si  mesmos”  (Motter, 2022, p. 14), na qual “algoritmos não apenas criam movimentos e devires, mas, principalmente quando em buscadores ou em outras fontes de conhecimento, ajudam ou acabam por estabilizar sentidos e/ou informações sobre determinados sujeitos ou assuntos” (Ibidem). Entendemos que os sistemas de classificação de conteúdo dessas plataformas são tecnologias que produzem normas, “assim como outros tipos de rastros digitais a serem mapeados, que corroboram uma diversidade  de  estratégias  que  impõem,  como  horizonte,  a  cisheteronormatividade  enquanto único imaginário-realização possível” (Ibidem).

As mudanças anunciadas pela Meta fazem parte de uma trajetória que busca controlar corpos. E, para além de tudo, nos tornaremos a equipe de moderação da Meta. Trata-se de uma autorização para o fascismo, em utilização do discurso de ódio na comunicação pública, degradando grupos historicamente oprimidos, sendo uma forma intencional de gerar iniquidade entre pessoas por conta de seus marcadores sociais.

Fomos apresentados aos espaços de mídias sociais com a ideia de que seríamos diretores de edição, capazes de contar a história que desejássemos, com fio narrativo, imagens e público-alvo, no entanto, o que se apresenta é o completo oposto: as plataformas têm domínio sobre nossos discursos e narrativas, sobre a corporeidade das redes pela representação de um ser via o seu desenho. 

Como um grande mosaico do que tem se desenhado socialmente, as plataformas anunciam: se o capitalismo está em crise, o fascismo é acionado. As novas diretrizes, transformações políticas com efeitos imediatos em nossas vidas, são uma ameaça a todos os corpos dissidentes, é mais um grau que sobe nesse termômetro.

Lembramos que, no Brasil, o racismo e a LGBTQIAPN+fobia continuam sendo crimes, mesmo não havendo regulação nas plataformas, podem ser denunciados formalmente, em que pese os limites para se fazer uso desse recurso.

Referências

CESARINO, Letícia. O mundo do avesso: verdade e política na era digital. Ubu Editora, 2022.

FOUCAULT, Michel et al. História da sexualidade I: a vontade de saber. In: História da sexualidade I: a vontade de saber. 1988. p. 152-152.

MOTTER, J. P. J. . A compreensão das lesbianidades a partir do Google. In: Anais do I Congresso Online de Resistência LGBTI, v. 1, n. 1, 2020. 

MOTTER, Julianna Paz Japiassu. Como as plataformas digitais têm (re) produzido as lesbianidades? Uma abordagem decolonial dos processos de plataformização das sexualidades. Anais da ReACT-Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia, v. 5, n. 5, 2022.

O’NEIL, Cathy. Algoritmos de destruição em massa. Editora Rua do Sabão, 2021.

RICH, Adrienne. Heterossexualidade compulsória e existência lésbica. Bagoas-Estudos gays: gêneros e sexualidades, v. 4, n. 05, 2010.

SILVA, Tarcízio. Racismo algorítmico: inteligência artificial e discriminação nas redes digitais. Edições Sesc SP, 2022.

WITTIG, Monique. O pensamento hétero e outros ensaios. Autêntica Editora, 2022.

ZILLER, Joana et al. O algoritmo anti-interseccional: contribuições do pensamento lésbico para análises em plataformas. Revista Latinoamericana de Ciencias de la Comunicación, v. 21, n. 39, 2022.


ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância. Editora Intrínseca, 2021.


Raabe Bastos é mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), além de ser pesquisadora do Grupo de Estudos em Lesbianidades (GEL), vinculado à mesma instituição.