A MC Mano Feu conversou com o ALB sobre sua ascensão na cena do funk, que começou com seus primeiros shows aos 19 anos e evoluiu para colaborações em projetos 100% femininos e sapatão.
Ao longo de sua trajetória, ela relembrou com carinho momentos importantes, como o lançamento de sua primeira música abertamente lésbica, “Eu Sou Assim“. A artista também compartilhou como a falta de referências sapatão no funk a motivou a criar suas próprias músicas, abrindo caminho para que outras mulheres possam compartilhar suas vivências. Mano Feu também ressalta a importância de se posicionar e representar nossa comunidade, sem medo de ser quem realmente é.
Conta pra gente, onde você nasceu e cresceu?
Eu nasci em Campinas, no interior de São Paulo, no bairro Vila Costa e Silva, uma referência no samba. Minha família inteira é do samba.
Cresci no bairro chamado CDHU São Martins, onde mataram o Daleste. Vim para São Paulo com 16, 17 anos e estou aqui desde então. Foi onde construí minha carreira. Aos 19 anos, fiz meus primeiros shows profissionais, e considero esse o início da minha carreira, porque foi quando recebi meu primeiro cachê.
E musicalmente falando, o que te forma como artista? Tem alguém que te marcou logo no começo?
Minhas referências musicais são Claudinho & Buchecha, Cássia Eller, Legião Urbana e Ludmilla. A Cássia Eller foi uma referência pra mim na infância. Depois eu conheci ela, fiquei muito feliz. Ajudou muito nas minhas composições. Eu me soltei mais pra compor sobre os meus amores.
Você já falou em outras ocasiões sobre os desafios da cena. O que é mais difícil quando se é uma mulher lésbica dentro do funk?
Eu só tenho visibilidade porque canto bem, porque faço cada vez melhor. Mas é muito cansativo ter que provar todos os dias que você é dez vezes melhor para ser reconhecida. As mulheres já passam por se provar o tempo todo. As mulheres negras, vinte vezes mais. As mulheres negras e lésbicas, então? Trinta, quarenta vezes mais. A gente precisa passar por tudo isso e ainda superar. Mas seguimos.
Ocupar esse espaço tem que ser pé na porta e sem medo, porque muita gente quer te derrubar. E por nada. Só pela sua existência. Pra mim, história mesmo foi quando eu lancei “Linguadinha na Xoxota” com o Bonde da Linguadinha, um projeto feito por mulheres lésbicas e bissexuais. 100% feminino, sapatão.
E o Linguadinha na Xoxota, pra mim, foi tipo: “caramba, isso é real!”. E as meninas deixaram bem claro que a gente tava fazendo história. E eu entendi isso. Porque foi o primeiro funk lésbico putaria, né? Então fez história.
Como as suas experiências com outras mulheres te atravessam criativamente?
Eu escrevo poesia desde nova, comecei com 12 anos, e depois comecei a escrever músicas também. Com 13 para 14 anos, fiz minha primeira música. As primeiras músicas que escrevi foram sobre as minhas paixões. Para mim, escrever sempre foi terapia. Vindo da comunidade, sem acesso a terapia de fato, eu nem sabia o quanto a psicologia era importante. Mas papel, caderno e caneta sempre foram meu desabafo.
Eu escrevia e cantava muito sobre os meus primeiros amores, e também sobre a vivência lésbica. Sobre união, luta e resistência. No começo, eu cantava de forma consciente, mas ainda não tinha escolhido minha causa.
Minha virada aconteceu no evento da Visibilidade Lésbica. Antes disso, eu estava no meio do funk heteronormativo. A galera falava: “Mano, você já milita com seu som! Você tem que ir para os olhos de sapatão.” E eu disse: “Então me leva!“. Subi no palco da Visibilidade Lésbica, no Largo do Arouche. Não lembro bem o ano, mas lembro do momento em que perguntei: “Tem sapatão aí?” E ouvi aquele grito forte, aquele eco de resposta. Foi ali que entendi para quem eu precisava cantar. Era para nós. Para essas mulheres que estão em todos os cantos do país, buscando visibilidade.
Depois disso, escrevi minha primeira música abertamente sapatão, Eu Sou Assim. Em 2017, 2018, comecei o trampo da Putaria Lésbica. E assim me tornei pioneira do funk sapatão em São Paulo e outros lugares. Nunca encontrei referências para o que eu queria ouvir. Então, criei as minhas próprias.
E quais obstáculos mais te marcaram nessa trajetória?
O primeiro grande desafio foi o famoso “mata-sonho” da sociedade. Sempre tinha alguém falando: “Desiste, eu também tive um sonho e não consegui.”
Quando comecei a escrever música, ainda era uma adolescente inocente. Esse “mata-sonho” estava por toda parte. Além disso, sendo uma mulher lésbica, negra e de fé, eu já sabia que enfrentaria mais barreiras. Sempre fui muito bofinho desde menina, e as críticas eram ainda maiores. Todo mundo esperava uma chance para me criticar. Eu sinto que eu precisei provar demais. E não fui reconhecida em espaços pelo talento que eu tenho. Acredito que eu tive que ser sempre mil vezes melhor. E, ainda assim, as pessoas conseguiam me sabotar, me invisibilizar.
Outro desafio foi me desconstruir e perceber que eu não dependia dos produtores de funk. No começo, achava que precisava deles para crescer, mas percebi que o funk tradicional não tinha espaço para mim. Pelo contrário, eu tinha que sair dali, porque nunca ia crescer naquele ambiente.
O funk é extremamente machista. As mulheres precisam aceitar muita coisa errada. Já estive em diversos espaços e sempre me posicionei contra isso. Uma vez, discuti com um DJ muito grande porque ele desrespeitou uma amiga minha. Ele disse para ela: “Eu produzo sua música se eu te comer.” Eu fiquei muito puta e bati de frente.
Foi aí que percebi que não precisava desse mundo para crescer. Conheci a cena lésbica, a união sapatão, e entendi que eu poderia fazer isso com as minhas irmãs. Eu queria um funk que nos representasse. Mas isso não existia. Então, eu fiz existir.
Como você enxerga a importância da união entre sapatonas dentro e fora da música?
Não deixem o sistema virar uma mulher contra as outras. A gente precisa se unir pra conseguir alcançar algum objetivo, tá ligado? O mundo inteiro tá nos sabotando a toda hora. Não se sabote sabotando outra mulher. Porque você tá se auto-sabotando. Os caras se unem, se fortalecem, até em estupro eles se ajudam.
E a gente não consegue se ajudar, às vezes, num trampo juntas, numa boa música, ou apoiar a música, apoiar a vendinha da sapatão. Vamos quebrar isso e se unir como mulheres sapatonas. Vamos se comprar e se bancar. Entre nós, essa união é necessária. Tá mais que na hora.
Tem alguma faixa que você sente que traduz bem sua identidade lésbica?
Sim. Eu criei Eu Sou Assim, e essa música fala exatamente sobre mim. Ela também responde perguntas que sempre foram feitas às mulheres lésbicas. De certa forma, ela educa através da música. Foi a primeira música sapatão que escrevi, no momento em que despertei para mim mesma e percebi que minha causa era feita de luta.
Eu não via representatividade no funk. Não existia nada que me representasse como uma sapatão bofinho. Tinha milhões de sapatões por aí, mas ninguém no funk falando sobre isso de forma aberta. Pelo menos, não de forma direta. Então, eu escrevi.
E no que você tá trabalhando agora?
Até junho, vamos lançar uma parceria internacional com a América, Oro 5. Ela é produtora musical, mandou umas bases para a gente, e nos conhecemos aqui em São Paulo. Vamos lançar duas faixas musicais juntas. Também estamos em processo de lançar a faixa Grelo com Grelo em junho, mês da diversidade, além de uma parceria com o Sapabonde.
Resolvemos juntar tudo e fazer uma mistura! Doze sapatões juntas. Tá lindo demais, tá tudo de bom! Tá sapatônico, tá tipo… caminhão tombando na BR! Tá muito lindo. Então fiquem ligados, porque tá vindo quentinho!