Do Fonsequistão ao funk, Marieh transforma sua vivência sapatão em música

Em entrevista ao ALB, Marieh compartilhou, com muito humor e cantoria, sua trajetória no funk: das idas escondidas aos bailes, às noites em que dormiu no estúdio. Com orgulho, ela fala sobre suas referências e relembra momentos divertidos e desafiadores que a moldaram artisticamente.

Levando um recado de liberdade e afeto sem censura, a artista afirma que sua vivência lésbica é a principal fonte de inspiração para suas músicas, além de retratar as dificuldades de se inserir e afirmar em um cenário majoritariamente heteronormativo e masculino.

Me conta um pouco da sua infância… Onde foi que tudo começou?

Eu nasci em Niterói, mas a primeira cidade onde morei quando era criança foi São Gonçalo. Depois fui para Niterói, para o Fonsequistão, que é o bairro onde cresci uma parte da minha vida e onde minha mãe cresceu a vida inteira. A gente chama de Fonsequistão, mas o nome mesmo é Fonseca. É um apelido carinhoso porque é um lugar muito tranquilinho, muito de boas, um bairro periférico da cidade de Niterói.

Mais tarde, fui morar em Búzios, numa fazenda na parte rural, no lugar chamado Rasa, que quem conhece Búzios só de novela ou turismo geralmente não conhece. Minha avó mora lá, e foi nesse sítio que cresci. Depois, voltei para Niterói, e a vida adulta se dividiu entre São Paulo e Rio de Janeiro. 

E quando você pensa em quem te formou artisticamente, quem vem na sua cabeça?

Eu tenho muita inspiração no movimento da MPB, na Cassia Eller, no Cazuza… A Cassia era tudo pra mim. Eu era completamente apaixonada por ela. Aquela postura, o jeitão sapatão… e eu nem sabia ainda que era sapatão, mas já adorava. E aquele feat da Cassia com o Edson Cordeiro, então… É incrível! Acho que minhas inspirações começaram lá atrás, com essa MPB mais antiga e com o funk também, o funk das antigas.

Eu era muito fã do funk e ia toda sexta pro Castelo das Pedras, em São Gonçalo. Se pudesse, ia também na sexta. Era menor de idade, então nem sempre conseguia entrar, porque o baile era de adulto, tinha show da Furacão, Mulher Melancia… Sempre admirei o jeito da MC Marcelly, direto e reto. Minhas inspirações estão ali, no funk carioca, sempre curti mulheres empoderadas na música.

Fora do Brasil, minha referência sempre foi a Britney Spears. Quando eu morava na fazenda, ela era tudo pra mim. Esperava ansiosa pelo clipe na TV e ficava imitando ela. Acho que minha parte mais sensual vem disso. E a Lady Gaga também, super pop, também me influenciou muito. Então, a minha mistura é essa: MPB, funk, pop.

Atualmente, sou completamente obcecada pela Billie Eilish. Nem ligo tanto pra vida pessoal dela, mas as músicas… Ai, que sapatona gostosa! E a Ludmilla, sou muito fã dela. Quando ela se assumiu com a Brunna, aquilo foi incrível. Ver uma artista do tamanho dela, assumindo um amor tão lindo, tão afetuoso, foi muito importante pra mim. Ver o amor entre duas mulheres, demonstrando carinho e respeito, me faz muito feliz e me sinto representada.

Você sente que existe espaço pra você no funk? Como tem sido trilhar esse caminho?

Cara, eu sou muito grata, de verdade. Conquistei muitos espaços legais, mas isso não foi fácil. Trabalhei muito, muito mesmo. Desde que lancei meus primeiros funks, trabalhei de segunda a segunda. Dormia no estúdio, às vezes passava 15 dias seguidos morando lá. Eu me arrumava uma cama com as espumas de isolamento acústico das paredes. Foram muitos esforços, muitos momentos de ceder também, mas sou muito grata. Hoje, sinto que estou em um lugar legal, com um público bacana, com reconhecimento. E isso é muito gostoso.

Agora, está mais tranquilo, mas a caminhada foi difícil. A gente, que é sapatão, sabe que o trabalho é muito árduo. Mas é gratificante. Artista passa muito perrengue, muito mesmo, então ser reconhecida por algo que eu construí, sabendo o quanto suei, é muito importante.

E o amor com outras mulheres? Como ele aparece no seu som?

As relações com mulheres estão em tudo o que eu faço. Minhas músicas são muito inspiradas nas minhas vivências e nas relações que tenho com outras mulheres. Quase todas as minhas músicas falam de alguém, de uma mina, de uma crush, de alguma situação real que vivi. Faço com tesão, pensando em mulher e com memória.

Eu sou compositora também, então às vezes escrevo pra outros artistas. Por exemplo, aquela música Bissexual… eu não sou bissexual, né? Eu sou sapatão. No máximo, pansexual. Mas não me relaciono com homens cis héteros. Fiz essa música num camping de composição pra uma outra artista. E aí eu entro nessa onda, tento entender o que é o universo dela, a arte dela, o desejo dela.

Amo ser sapatão, adoro esse universo, e todas as minhas músicas falam disso. Eu amo amar outras mulheres. Amo. Eu gosto muito de ser sapatão. Gosto muito dessa surra de xoxota, sabe? É isso. Amo todos os tipos de mulher. E se você escutar uma música minha, pode ter certeza (ou pelo menos desconfiar) que é uma situação real. Que eu vivi. Que foi uma delícia.

Minhas músicas têm muito de comédia também. A ideia de fazer esse tipo de provocação vem do funk clássico, com seu tom irreverente. Essa coisa de brincar com as palavras, dar um tom cômico, está muito presente no meu trabalho. O funk sempre teve esse lado mais divertido, e eu me divirto fazendo isso. Então, o que vivo com outras mulheres é 100% o que eu escrevo e canto. Faço tudo com tesão, com amor, e isso transparece nas minhas músicas.

E na sua trajetória, quais foram os desafios a superar como uma mulher lésbica?

Cara, “foram não”, eles são. São muitos. No funk, por exemplo, a maioria dos produtores ainda são homens cis héteros, o que torna mais difícil a minha inserção nesse espaço. A dinâmica da produção no funk é complicada: a maioria dos produtores são homens e, quando você tenta fazer uma música com uma temática sapatão, é mais difícil. Há muitas produtoras mulheres, mas elas ainda são minoria.

E o que é ainda mais complicado é o fato de que, dentro desse ambiente, a homofobia muitas vezes é internalizada. Não é mais aceitável ser abertamente homofóbico, mas a homofobia ainda existe na forma de comentários, críticas sutis. Como: “essa música não vai tocar tanto” ou “se for de hétero, vai rodar mais”. Isso acontece muito. Às vezes, eu sou deixada de lado, ou dizem que o que estou fazendo não é tão importante. E é bem difícil encontrar alguém que realmente queira produzir minha música como ela é, sem colocar essas barreiras.

Além disso, a sociedade e a música ainda são muito machistas, o que torna mais difícil para uma mulher sapatão como eu ter seu espaço. As pessoas ainda têm essa ideia de que a mulher deve performar para agradar os homens, que meu corpo, minha sensualidade, devem estar ali para gerar prazer para os homens. Quando sou feminina, as pessoas ainda acham que estou ali para servir a esse prazer masculino.

Eu faço música pensando nas mulheres, e me sinto bem fazendo isso, mesmo que os héteros não compreendam o real significado do que estou fazendo. Meu público LGBT me ama e me apoia, e isso é o que importa. Eu faço a música que eu queria escutar quando era mais nova, quando me senti apagada, sem representatividade. Então, eu vou continuar fazendo isso, representando as nossas vivências e lutando por espaço.

Você tem alguma música sua que sente que representa mais a sua vivência lésbica?

Olha, eu costumo me identificar mais com a palavra “sapatão” hoje em dia. Já fui muito ligada à palavra “lésbica”, claro, mas agora sinto que o termo “sapatão” tem mais a ver comigo, e estou entendendo isso melhor. Pensando aqui, tem uma música que me veio na cabeça: “Tô Querendo um App”. Ela reflete bem o que eu sinto sobre a liberdade sexual que, muitas vezes, a gente não pode viver como as pessoas cis-homens. A letra tem uma pegada que fala de liberdade sem amarras, e é exatamente o tipo de liberdade que eu sonho para nós, mulheres.

O que você acha sobre essa liberdade de expressão sexual, comparando com a experiência dos homens cis?

Quando penso nos homens, eles sempre foram incentivados a ter liberdade sexual desde jovens, seja os héteros ou os gays. E, por muito tempo, a gente, como mulheres, teve a liberdade sexual restrita, com muitos estigmas e normas. Agora, finalmente, vemos uma nova geração tentando quebrar um pouco isso, mas não é fácil. Antes, a nossa cultura estava muito ligada à ideia de casar, perder a virgindade e ter um papel muito restrito dentro do casamento. Para os homens sempre foi mais simples. A gente ainda está tentando desatar esses nós. 

E isso se reflete em várias situações. Se um cara manda uma mensagem para uma mina querendo algo casual, não tem problema, é super comum. Agora, se uma mulher faz isso, ela é julgada, como se não pudesse ter esse tipo de atitude. E eu não estou falando de fetichismo, mas de liberdade de ser quem a gente é. Nem sou a pessoa mais monogâmica do mundo, eu sou não monogâmica, sou do mundo. Mas é sobre ter essa liberdade. Muitas vezes, como mulher sapatão, eu tava em casa com tesão e queria transar, sabe? Às vezes a gente só quer transar e pra gente isso ainda é muito difícil.

E tem alguma novidade vindo aí?
Sim, está vindo a segunda parte do meu álbum Cocota! Estou super empolgada com isso, vai sair lá para o final de maio. Tem muita coisa boa vindo. A primeira parte já está disponível, então aproveitem! E logo, logo vou soltar as datas da turnê também. A primeira já tá muito foda. E a segunda parte vai só somar pra deixar mais foda ainda. Escutem Cocota!